sábado, 25 de agosto de 2007

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Todo o resto
Por Martha Medeiros (Revista do jornal O Globo)

"EXISTE O CERTO, O ERRADO E TODO O RESTO”. Esta é uma frase dita pelo ator Daniel Oliveira vivendo Cazuza, em conversa com o pai, numa cena que, a meu ver, resume o espírito do filme dirigido por Sandra Werneck e Walter Carvalho. Aliás, resume a vida.

Certo e errado são convenções que se confirmam com meia dúzia de atitudes. Certo é ser gentil, respeitar os mais velhos, seguir uma dieta balanceada, dormir oito horas por dia, lembrar-se dos aniversários, trabalhar, estudar, casar-se e ter filhos, certo é morrer bem velho e com o dever cumprido. Errado é dar calote, rodar de ano, beber demais, fumar, se drogar, não programar um futuro decente, dar saltos sem rede. Todo mundo de acordo?
Todo mundo teoricamente de acordo, porém a vida não é feita de teorias. E o resto? E tudo aquilo que a gente mal consegue verbalizar, de tão intenso? Desejos, impulsos, fantasias, emoções. Ora, meia dúzia de normas preestabelecidas não dão conta do recado. Impossível enquadrar o que lateja, o que arde, o que grita dentro de nós.
Somos maduros e ao mesmo tempo infantis, por trás do nosso autocontrole há um desespero infernal. Possuímos uma criatividade insuspeita: inventamos músicas, amores e problemas, e somos curiosos, queremos espiar pelo buraco da fechadura do mundo para descobrir o que não nos contaram. Todo o resto.
O amor é certo, o ódio é errado e o resto é uma montanha de outros sentimentos, uma solidão gigantesca, muita confusão, desassossego, saudades cortantes, necessidade de afeto e urgências sexuais que não se adaptam às regras do bom comportamento. Há bilhetes guardados no fundo das gavetas que contariam outra versão da nossa história, caso viessem a público.
Todo o resto é o que nos assombra: as escolhas não feitas, os beijos não dados, as decisões não tomadas, os mandamentos a que não obedecemos, ou a que obedecemos bem demais — a troco de que fomos tão bonzinhos?
Há o certo, o errado e aquilo que nos dá medo, que nos atrai, que nos sufoca, que nos entorpece. O certo é ser magro, bonito, rico e educado, o errado é ser gordo, feio, pobre e analfabeto, e o resto nada tem a ver com estes reducionismos: é nossa fome por idéias novas, é nosso rosto que se transforma com o tempo, são nossas cicatrizes de estimação, nossos erros e desilusões.
Todo o resto é muito mais vasto. É nossa porra-louquice, nossa ausência de certezas, nossos silêncios inquisidores, a pureza e a inocência que se mantêm vivas dentro de nós mas que ninguém percebe, só porque crescemos. A maturidade é um álibi frágil. Seguimos com uma alma de criança que finge saber direitinho tudo o que deve ser feito, mas que no fundo entende muito pouco sobre as engrenagens do mundo. Todo o resto é tudo que ninguém aplaude e ninguém vaia, porque ninguém vê.

sábado, 18 de agosto de 2007

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No fantástico filme “O Sacrifício”, do russo Tarkovski, já no início é mencionado que estamos em desequilíbrio. É dito que há uma desarmonia entre nossa materialidade e nossa espiritualidade, e ainda que até os homens selvagens teriam tido mais espiritualidade que nossa civilização atual. Acho que cabe o texto de Leonnardo Boff:

Ressonância Schumann (Leonardo Boff*)
Não apenas as pessoas mais idosas, mas também jovens sentem a experiência de que tudo está se acelerando excessivamente. Ontem, foi carnaval, dentro de pouco será Páscoa, mais um pouco, Natal. Esse sentimento é ilusório ou possui base real? Pela "ressonância Schumann" se procura dar uma explicação.

O físico alemão W.O. Schumann constatou em 1952 que a Terra é cercada por um campo eletromagnético poderoso que se forma entre o solo e a parte inferior da ionosfera que fica cerca de 100 km acima de nós. Esse campo possui uma ressonância (dai chamar-se ressonância Schumann) mais ou menos constante da ordem de 7,83 pulsações por segundo. Funciona como uma espécie de marca-passo, responsável pelo equilíbrio a biosfera, condição comum de todas as formas de vida. Verificou-se também que todos os vertebrados e o nosso cérebro são dotados da mesma freqüência de 7,83 hertz.

Empiricamente fez-se a constatação que não podemos ser saudáveis fora desta freqüência biológica natural. Sempre que os astronautas, em razão das viagens espaciais, ficavam fora da ressonância Schumann, adoeciam. Mas, submetidos à ação de um "simulador Schumann" recuperavam o equilíbrio e a saúde.

Por milhares de anos as batidas do coração da Terra tinham essa freqüência de pulsações e a vida se desenrolava em relativo equilíbrio ecológico. Ocorre que, a partir dos anos 80 e de forma mais acentuada a partir dos anos 90, a freqüência passou de 7,83 para 11 e para 13 hertz por segundo. O coração da Terra disparou.

Coincidentemente desequilíbrios ecológicos se fizeram sentir: perturbações climáticas, maior atividade dos vulcões, crescimento de tensões e conflitos no mundo e aumento geral de comportamentos desviantes nas pessoas, entre outros. Devido a aceleração geral, a jornada de 24 horas, na verdade, é somente de 16 horas. Portanto, a percepção de que tudo está passando rápido demais não é ilusória, mas teria base real neste transtorno da ressonância Schumann.Gaia, esse superorganismo vivo que é a Mãe Terra, deverá estar buscando formas de retornar a seu equilíbrio natural. E vai consegui-lo, mas não sabemos a que preço, a ser pago pela biosfera e pelos seres humanos. Aqui, abre-se o espaço para grupos esotéricos e outros futuristas projetarem cenários, ora dramáticos, com catástrofes terríveis, ora esperançadores como a irrupção da quarta dimensão pela qual todos seremos mais intuitivos, mais espirituais e mais sintonizados com bioritmo da Terra.Não pretendo reforçar este tipo de leitura. Apenas enfatizo a tese recorrente entre grandes cosmólogos e biólogos de que a Terra é, efetivamente, um superorganismo vivo, de que Terra e humanidade formamos uma única entidade, como os astronautas testemunham de suas naves espaciais.

Nós, seres humanos, somos Terra que sente, pensa, ama e venera. Porque somos isso, possuímos a mesma natureza bioelétrica e estamos envoltos pelas mesmas ondas ressonantes Schumann.

Se queremos que a Terra reencontre seu equilíbrio devemos começar por nós mesmos: fazer tudo sem stress, com mais serenidade, com mais amor que é uma energia essencialmente harmonizadora. Para isso importa termos coragem de ser anti-cultura dominante que nos obriga a ser cada vez mais competitivos e efetivos. Precisamos respirar juntos com a Terra para conspirar com ela pela paz.
Leonardo Boff (Leonardo Boff é teológo e um dos criadores da Teologia da Libertação. Por causa de suas condenações da Igreja Católica de Roma, renunciou às funções de padre em 1993.)

sábado, 11 de agosto de 2007

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Saneamento Básico

“O cabelo faz do homem um ser misterioso que carrega na cabeça, na parte do corpo que é mais nítida e mais marcada, uma coisa rebelde como um mar e confusa como uma floresta. Está quase fora do corpo, é uma espécie de jardim privado, onde o dono exerce à vontade sua fantasia e sua desordem. É qualquer coisa que cresce e que transborda como se estivesse livre do domínio da alma.” Poema "Três alqueires e uma vaca” de Gustavo Corção recitado pelo personagem de Camila Pitanga

Saneamento Básico não é o melhor filme de todos os tempos e também talvez nem seja o melhor filme do ano. Contudo é um filme bastante divertido, com uma história que poderia ter sido filmada em qualquer pequena cidade do interior do país. Os atores são excelentes, a trilha sonora, em sua maioria de música italianas, é emocionante, a fotografia cuidadosa. Jorge Furtado, diretor que já é sinônimo de qualidade, construiu uma obra leve e divertida, e ao mesmo tempo profunda. É um filme sobre como fazer cinema, um filme sobre mobilização de um grupo em prol de uma causa, sobre o modo como nossos políticos reagem a essas mobilizações, e também sobre o relacionamento entre pais e filhos, marido e mulher, irmão e irmã. Enfim, Saneamento Básico é uma demonstração de que o cinema brasileiro é capaz de produzir grandes obras.

sábado, 4 de agosto de 2007

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Recordar é viver. Abaixo disponibilizo um texto escrito a um tempo atrás.

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Tragédia no Rio de Janeiro

Meus caros, tenho que dizer que já esperava por algo parecido. Afinal, mesmo antes de chegar aqui no Rio de Janeiro já tinha em mente a imagem da cidade violenta que plantam em nossas mentes via telejornais, novelas, revistas e inúmeros outros meios.

Assim, quase que já previa que um dia, ao sair de casa, ao chegar ao trabalho, ao sair para o almoço, ao caminhar no fim de semana, ao deixar a casa para ir ao cinema, ou ao estar em qualquer ponto fora de casa poderia ver algo que desde que cheguei aqui ainda não houvera visto.

O temor estava entranhado não só na mente, mas no corpo, no espírito, no ar que respiramos. Então me preparava. Quase que sabia que o dia iria chegar e que eu tinha que estar preparado para isso. Até então nenhum amigo sofrera ou vira nada, e mesmo nenhum conhecido, nenhum companheiro de trabalho.

O tempo foi passando, foi passando, e nada acontecia. O que estava errado? Comecei até a ficar displicente, a sair à noite sem tomar determinados cuidados, a ir até locais que poderiam não ser tão recomendados, a andar de ônibus que vez ou outra eram alvos de roubos. Enfim, passei a achar que aquela imagem era falsa. Cadê aquele Rio da televisão? É verdade que não era tão tranqüila quanto qualquer cidade do interior, mas também não tinha índices de violência superior a nenhuma capital de estado.

E os meses foram se passando, se passando, até que ontem, até que ontem...

Estava eu caminhando pelo calçadão em um final de tarde de inverno, que mais parecia de verão, com pensamentos que viajavam pra longe, que iam e vinham. Que eram às vezes nobres, às vezes pueris. Pensamentos que revisitavam o passado e que tentavam espiar o futuro, quando tiveram que irremediavelmente pousar no presente.

Um estalo, um barulho atemorizante, um estampido oco atravessou o ar. Subitamente a garota da bicicleta diminuiu a velocidade, o gari que limpava a areia da praia abaixado se levantou, o vendedor de coco do quiosque virou a cara, o corredor maratonista parou, a senhora de vestido longo arregalou seus olhos e talvez só a estátua de bronze do poeta mineiro Carlos Drumond de Andrade, que jaz serena sentada no banco num ponto da calçada, não tenha mudado de expressão.

Parecia que o tempo havia parado, que todos os outros sons haviam cessado para dar lugar a segundos de incompreensão, segundos de expectativa, segundos de indagação.

O ônibus passou para desobstruir a visão, e atrás dele lá estava a prova do acontecido.

Lá estava ela, a garrafa de plástico, de refrigerante, vazia, que algum desconhecido desavisado usara e abandonara, não sem antes tampá-la prendendo dentro muito ar. Quando o grande veiculo basculante passou sobre ela, a coitada soltou um grito de despedida que provocou um suspense no bairro, cenário da vida cotidiana.

O barulho dos carros, das motocicletas e dos ônibus voltou. A garota da bicicleta acelerou, o gari que limpava a areia da praia continuou catando lixo, o vendedor de coco do quiosque vendeu mais um, o corredor maratonista retornou à corrida, a senhora de vestido longo retomou com os olhos na posição normal e só o poeta Drumond passou incólume por tudo e continuou inabalável.

***

Em tempos de Pan-2007 no Rio de Janeiro, tanto os turistas quanto a própria população pôde sentir como seria a vida nesta cidade sem essa “tragédia psicológica”. Boa parte dos policiais permanecerão aqui, a economia parece crescer em um ritmo mais forte, o poder público manifesta interesse em se fazer presente nos morros e periferias, o Cristo foi eleito uma das sete maravilhas do mundo moderno, o que atrairá mais turistas e negócios. Quem sabe esse ano não seja um divisor de águas.
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