sábado, 27 de setembro de 2008

[53] Proximidade e Expectativa

Gostaria de divagar um pouco sobre estes dois conceitos que há muito me fazem refletir: proximidade e expectativa.

Primeiro uma definição denotativa de cada um. Proximidade: condição ou estado do que é próximo; vizinhança; contiguidade; (no pl. ) cercanias, arredores. Expectativa: esperança baseada em supostos direitos, probabilidades ou promessas; expectação.

De certa forma ambos têm a ver com distância; no primeiro caso: distância física; no segundo: distância psicológica.

Pois a minha teoria é que esses dois conceitos são chaves em muitos aspectos de nossas vidas. Após lerem minhas divagações tentem lembrar deles ao longo de algumas semanas e relacioná-los com circunstâncias de suas vidas.

Proximidade.
Tudo que é próximo a nós exerce inimaginável influência e ditam nosso modo de viver. Isso parece natural, não? Mas quantas vezes nos damos conta disso? Por quê, por exemplo, temos tanto apego a nossa terra natal e em geral queremos retornar a ela? E se nunca saímos de nossa cidade, por que essa hipótese nos amedronta? Para os que vivem fora, temos muitas vezes o plano de voltar para lá mais adiante, após aposentar, como se nos iludíssimos para que tenhamos conforto mental. Outra questão, por que muitas vezes nossos melhores amigos são aqueles que estão mais próximos, e outros com os quais, até, temos mais afinidade, vão ficando cada vez mais distantes? E isso talvez também explique porque somos tão apegados a nossos familiares, a proximidade genética...

Expectativa.
Pro bem ou pro mal... Sempre que depositamos elevada expectativa que alguma viagem vai ser fabulosa, que algum filme será vibrante, que algum livro mudará nossa vida, que alguma pessoa nos encantará... se a profecia se confirma tudo terá quase um aspecto de normalidade. Mas se a viagem for apenas normal, o filme apenas mediano, o livro comum, a pessoa como todas as outras, ficaremos decepcionados. Por outro lado, se viajamos para um local ao acaso em uma decisão de última hora, se nos deparamos com um livro qualquer na livraria, se alugamos um filme só porque ele estava à nossa frente na locadora, se conhecemos uma pessoa sem compromisso, talvez o fato de eles serem apenas normais, não ruins, já nos proporcionarão uma tremenda satisfação, pois não tínhamos depositado nenhuma expectativa de que eles nos deixariam deslumbrados. Citei aqui viagem, filme, livro e pessoa, mas isso vale para outros itens: uma festa, uma pescaria, uma peça teatral, um emprego, um encontro...

Por essas e outras acho fundamental que controlemos e dosemos nossa expectativa, ela nunca poderá ser nem além nem aquém de certos patamares. Se for demais, a chance da decepção aumenta. Se for baixa, a chance de supervalorizarmos algo comum também cresce.

E também que fiquemos atento a essa influência que a proximidade exerce sobre nós. Despidos de nossa cultura, quem somos nós? O que genuinamente nos faz felizes? É isso que deve ser buscado até nossa morte. Não necessariamente os encontraremos perto de nós, pode ser que esteja distante, muito longe, embora muitas vezes, de fato estejam embaixo de nossos narizes. Até logo.
[52] Cautela com a laborlatria - Mário Sérgio Cortella

Uma das boas memórias de quem já teve o prazer de mergulhar na produção satírica de Mark Twain – pseudônimo do escritor norte-americano Samuel Clemens – é, sem dúvida, a narrativa da cerca a ser forçadamente pintada pelo menino na obra-prima As aventuras de Tom Sawer. Em um dia de sol inclemente, à beira do Rio Mississipi, quando tudo chamava à brincadeira e o lazer descompromissado, eis que surge a convocação compulsória para o trabalho e não há alternativa que o garoto posse encontrar, a não ser tornar aquele fardo algo com um dissimulado ar prazeroso e, mais ainda, convocar e convencer a outros que deveriam ajudá-lo com satisfação.

Em um determinado momento, procurando livrar-se da atividade e, até, ganhar algum dinheiro com aquilo que deseja que outros fizessem em seu lugar, aparece o argumento de que “Trabalho é tudo aquilo que uma pessoa é obrigada a fazer... Passatempo é tudo aquilo que uma pessoa não é obrigada a fazer”.

Pouco mais de um século após, um compatriota de Twain, o cartunista Bob Thaves, desenhou uma de suas instigantes tirinhas que tem como personagens Frank & Ernest, os desleixados e eventualmente oportunistas representantes do “homem comum” do mundo contemporâneo urbano; nesse quadrinho, Ernest, preocupado, pergunta a Frank: “Nós somos vagabundos?” Frank, resoluto, responde: “Não, nós não somos vagabundos. Vagabundo é quem não tem o que fazer; nós temos, só não o fazemos...”

Essa visão colide frontalmente com um dos esteios de uma sociedade que, na história, acabou por fortalecer uma obsessão laboral que, às vezes, beira a histeria produtivista e o trabalho insano e incessante. Desde as primeiras fontes culturais da sociedade ocidental, como por exemplo, vários dos escritos judaico-cristãos, há uma condenação cabal do ócio e do não-envolvimento com a labuta incessante; no Sirácida, um dos livros da Bíblia (também chamado Eclesiástico), há uma advertência: “Lança-o no trabalho, para que não fique ocioso, pois a ociosidade ensina muitas coisas perniciosas” (33, 28-29).

Já ouviu falar que o ócio é a mãe do pecado? Ou que o demônio sempre arruma ofício para quem está com as mãos desocupadas? Ou ainda, que cabeça vazia é oficina do diabo?

Essa não é uma perspectiva exclusiva do mundo religioso. Voltaire, um dos grandes pensadores iluministas e hóspede eventual da prisão na Bastilha dos começos do século 18 por seus artigos contra governantes e clérigos, escreveu em Cândido que “o trabalho afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade”.

Ou como registrou Anatole France, conterrâneo e herdeiro, no século seguinte, da mordacidade voltariana: “O trabalho é bom para o homem. Distrai-o da própria vida, desvia-o da visão assustadora de si mesmo; impede-o de olhar esse outro que é ele e que se torna solidão horrível. É um santo remédio para a ética e a estética. O trabalho tem mais isso de excelente: distrai nossa vaidade, engana nossa falta de poder e faz-nos sentir a esperança de um bom acontecimento”.

Não é por acaso que Paul Lafargue, um franco-cubano casado com Laura, filha de Karl Marx, e fundador do Partido Operário Francês, foi pouco compreendido na ironia contida em alguns de seus escritos. Em 1883, quando todo o movimento social reinvidicava tenazmente o direito ao trabalho, isto é, o término de qualquer forma de desocupação, o genro de Marx publicou Direito à preguiça, uma desnorteante e – só na aparência – paradoxal análise sobre a alienação e exploração humana no sistema capitalista.

Nessas horas é sempre bom reviver Rubem Braga em O conde e o passarinho que, ao falar sobre o Dia do Trabalho, escreveu, “A ordem foi mantida. Os operários não permitiram que a polícia praticasse nenhum distúrbio”.
Extraído do livro "Não espere pelo Epitáfio..." - Provocações Filosóficas - de Mário Sérgio Cortella
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